Um pai
Fernando A. Fernandes
Simonense, professor e diretor de escola aposentado,
Contador de histórias
O quintal da casa era separado dos vizinhos por cercas baixas de arame ou de bambu. Não havia maiores preocupações com segurança ou privacidade. Era comum as crianças de uma casa frequentarem os quintais dos vizinhos. Geralmente, junto com o grupo que incorporava todas as crianças da vizinhança. Uma das diversões era reunir esta molecada, que combinavam em roubar os outros quintais. Nada de importante ou valioso. Geralmente frutas, as mesmas que cada um já tinha em seu próprio quintal. Mas valia o passatempo. A própria criança da casa “assaltada” ia junto e ajudava indicando o que de melhor havia para o inocente saque.
O mais emocionante era ir ao quintal da casa de um senhor de poucas palavras e geralmente carrancudo, que não tinha filhos ainda crianças. No fundo do quintal havia um poço, que as crianças imaginavam muito profundo e perigoso. Com peixes. A aventura era tentar roubar alguns deles.
Ele não se lembra de alguma vez ter realmente concretizado a gatunagem. Mas a adrenalina ficava por conta do aparecimento do proprietário. Equipado com uma espingarda de pressão dava tiros de sal mirando o traseiro dos intrusos. Ele também não se lembra de alguém ter sido atingido, mas estão vivas em sua memória as carreiras desenfreadas em direção ao seu próprio quintal, porto seguro para todos.
Se era perfeitamente aceitável estas incursões, ninguém admitia que uma criança entrasse em seus quintais às escondidas e surrupiasse, por exemplo, algum brinquedo. Mesmo que a maioria dos brinquedos que ficavam nos quintais eram peças quebradas, velhas ou inservíveis. Pois um dos vizinhos dele tinha filhos mais ou menos da mesma idade que ele. Talvez por não brincarem habitualmente juntos com o resto da vizinhança (pois tinham uma mãe que todos concordavam que era chata e implicante), não eram vistos como dignos de confiança.
Logo se estabeleceu a certeza de que elas vinham entrando furtivamente no quintal do chalé e roubando alguns brinquedos importantes. Embora não se lembrassem quais eram os brinquedos alvos da ação, nem mesmo eles ainda existiam. Alguma coisa deveria ser feita para acabar com tal situação. Falar com a mãe dos ditos cujos, nem pensar. Com o pais, muito menos. Com os seus próprios pais, não. Que não era coisa de homem. Pois que todos eram homens. Ou pelo menos se achavam.
Não demorou muito e os irmãos traçaram uma estratégia infalível: iam construir uma armadilha. Correram pegar as ferramentas necessárias, como enxadão e escavadeira manual. E puseram-se a trabalhar. E cavaram muito. Na imaginação ou na memória deles, era um buraco retangular tão fundo que era maior que a altura de cada um deles. Como saíram dele depois de cavar não se lembram. E isso nem sequer é importante.
Feita obra, trouxeram folhas de jornal duplas e, abrindo cada uma delas, cobriram o imenso buraco. O jornal era preso nas extremidades por porções da terra dele retirada. Finalmente, espalharam com cuidado areia sobre toda a superfície das folhas, tornando-as invisíveis. Com cuidado e arte, disfarçaram todo o entorno da armadilha. E gostaram do que fizeram.
Como era tardinha, o sol se pondo, a coisa ficava ainda mais imperceptível. Correram se esconder atrás do limoeiro, bem ramoso e baixo o suficiente para não serem vistos. E o mais importante: podiam ver a cena que eles imaginavam imperdível: os meninos vizinhos sendo tragados pela armadilha.
Não se lembra ao certo quanto tempo ficaram esperando. Mas ele se lembra muito bem do que aconteceu. De repente, ele e os irmãos escutaram um assobio abafado, característico do
pai. Era ele! Voltando do trabalho, ia alimentar as galinhas lá embaixo, no galinheiro. Numa das mãos trazia um balde pesado de tanta ração que levava. Na outra, o balde com água. E lá vinha ele, o pai, bem pelo meio do quintal, distraído em seu assobiar e concentrado, provavelmente, em suas tarefas de criador avícola.
Ficaram, ele e os irmãos, paralisados e mudos de terror.
Até que, num segundo, viram o pai desaparecer no buraco da armadilha. Que honra seja feita, funcionou muito bem.
Da inércia, veio a afobação da urgência. Abaixados como podiam, correram para os fundos do quintal, sem falar e muito menos gritar. Pulando a cerca, foram para o rio que por ali passava, até alcançar a rua do outro quarteirão.
Bem mais tarde, voltaram para casa. Antevendo os terríveis castigos, esforçaram-se para aparentar uma insuspeita normalidade, como se isso fosse possível. Entraram pela porta da frente, como se só então estivessem chegando ao chalé.
Mal olharam para o pai.
Para alívio deles, o pai nada perguntou.
E eles, nada falaram.
E ficaram felizes.
Publicado no livro Terceira Pessoa,
Editora Multifoco, 2016.
Meu pai, Filinto Antonio Fernandes (1910-1995), com certeza é bem conhecido em São Simão, onde viveu e morreu. Para nós, filhos, os exemplos de retidão, responsabilidade e cidadania foram muitos e decisivos para nossa formação. Coletor Estadual, vicentino exemplar, jornalista. Atendendo um convite do amigo da infância e de sempre João Luiz Jorge para escrever a respeito de meu pai, preferi uma lembrança amorosa da meninice, um lado carinhoso e compreensivo da personalidade paterna. Uma saudade dolorida como qualquer saudade, mas gostosa por reviver tempos passados de uma convivência familiar tão cara.
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