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  • Foto do escritorO Trabalho

A memória é uma ilha de edição¹


Lembranças, histórias, sonhos e imagens fazem parte, de modo único, de nossa memória individual. Fazem parte, também, das memórias coletivas, quando a lembrança de situações, pessoas e lugares, assume modos diversos. A memória, parte de nossa constituição como sujeitos sociais, permite (re)ver nossas trajetórias, nossas transformações e, ainda, recriar nossas histórias. Algumas das lembranças que guardamos, conseguem nos transportar para momentos de nossa infância, quando o futuro era algo distante e, de fato, “futuro”. Quando resgatadas, as lembranças mostram nossos sonhos, muitos deles presentes na construção de nossos projetos de vida. Sonhos que deixaram de ser sonhos, porque realizados, sonhos que foram sendo substituídos por outros. Lembranças boas, lembranças nem tão boas, emergem no nosso dia a dia por meio de uma simples referência, de um som, quando nos surpreendemos frente à repetição de gestos conhecidos ou uma forma de falar, ou mesmo, quando experimentamos um sabor e sentimos aromas que parecem ser tão familiares.


As lembranças que agora temos, resultam de imagens construídas a partir de elementos que podemos acessar e, assim, a lembrança que temos de um fato antigo “não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor”. (Bosi, 1994, p.50)² Vale dizer, ainda, que “lidamos com nossas memórias do passado de maneira parcial ao atribuir-lhes emoções ou conhecimentos que só adquirimos depois do evento”. (Shacter, 2002)³. A essas singularidades junta-se nossa convivência com memórias subterrâneas, aquelas que, por diferentes razões, nem sempre emergem.


Ademais, muitas vezes as lembranças dão lugar ao esquecimento que, longe de corresponder à indiferença ou à alienação, também faz parte de nossa existência. Decorrente do peso da história ou dos fatos, esse processo de esquecimento mostra que “nem toda forma de recuperação do passado é uma apropriação reflexiva que permitiria o redimensionamento da ação e de suas causas. Há um esquecimento que é a força de desfazer o acontecido, que é confiança no que virá. [Mas,] a aposta na força de esquecer e de fazer o passado passar é temerária”. (Safatle, 2018)⁴.


Contudo, quando tentamos escrever sobre o lugar da memória em nossas vidas, quer real quer (re)criada, essa ilha de edição mistura e embaralha sons, sabores, cheiros, lugares, cores e movimentos que, ao ganhar concretude, possibilita dizer eu me lembro ...: do som sino da igreja, do apito do trem, do barulho da água da fonte luminosa, da música tocada no início das sessões do Cine Oásis, das chamadas para o circo recém chegado, das fanfarras quando desfilavam, do sinal que anunciava o começo e as trocas das aulas, da charrete do padeiro, do helicóptero que, algumas vezes, chegava com personalidades de então; do sabor do canudinho de doce de leite da dona Benzinha, do sorvete do Neves, do doce de batata doce roxa do Menegário, do pão alemão do Puccini, da bala de coco da dona Lindaura; do cheiro de cloro das piscinas do Recreasta, do eucalipto já perto da estrada, do verde dos morros após as chuvas; dos primeiros anos na escola, e, depois, das aulas no “ginásio”, dos festivais e gincanas nos meses de férias, dos passeios até o Cruzeiro, das conversas, após as aulas, na esquina do seu Sicca, sobre nossos sonhos e projetos....


E, tanto tempo depois, quantos desses sonhos se tornaram realidade!



Rosa Elisa Mirra Barone

São Paulo, julho de 2020.


 

1 SALOMÃO, Waly. Carta aberta a John Ashbery. In: Algaravias. Câmaras de Eco. São Paulo. Ed. 34. 1996. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/248083457/Carta-aberta-a-John-Ashbery-Waly-Salomao Acesso em 15 julho 2020.

2 BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

3 SCHACTER, Daniel. The seven sins of memory. Houghton Mifflin Harcourt, 2002.

4 SAFATLE, Vladimir. O passado como peso. Folha de São Paulo, Ilustrada. C6. 29/06/2018. Nesse artigo o autor tem como referência passagens da obra de Nietzsche.

5 “Eu me lembro” é a tradução de Amarcord (a m’arcord) usada no dialeto riminiano e nos remete ao argumento do filme de Federico Fellini (1973).

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